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Contos de Fadas



CONTOS DE FADAS


HISTÓRIAS PARA CRIANÇAS OU METÁFORAS DA VIDA HUMANA?

Vera Lúcia Soares Chvatal1

Contos de fadas, lendas, fábulas, mitos... Temas que fascinam e estimulam a nossa fantasia, mexem com a nossa imaginação. Nos remetem à infância quando o mundo parecia um caleidoscópio mágico de desejos e sonhos a modelar nossos dias.

O escritor, poeta, dramaturgo Jean Cocteau é o autor de uma frase interessante: “À História prefiro a mitologia. A História parte da verdade e ruma em direção à mentira; a mitologia parte da mentira e se aproxima da verdade”.

Ele tem razão, pois enquanto processo, o mito surge como “verdade”, porquanto suas raízes encontram-se, não nas explicações exclusivamente racionais e lógicas, mas na realidade vivida, intuída e, portanto, pré-reflexiva. O mito pertence ao mundo das emoções e da afetividade.

Joseph Campbel (l990), grande estudioso dos mitos, pontua que o sonho é um mito individual e os mitos são sonhos coletivos, isto é, são os sonhos da humanidade.

Da mesma forma que os mitos, os contos de fadas, plastificando os sonhos, falam de uma realidade individual e coletiva que faz parte da nossa vida cotidiana, como uma das formas do existir humano, arquetípica. E, nesse sentido, o conto “A Bela e a Fera” nos dá uma excelente metáfora para o entrosamento do nosso lado positivo, consciente e belo e o nosso lado obscuro, negativo, inconsciente... e que é pressentido, muitas vezes, como a fera dentro de nós.

Através desse conto podemos aprender que a fera, apesar de sua aparência, não é tão terrível e ameaçadora como parece. Também o nosso lado obscuro deixa de ser tão tenebroso e assustador, quando o encaramos e concordamos em conviver com ele, aceitando-o como parte integrante de nosso psiquismo.

No mundo ocidental, a maioria dos padrões que orienta a nossa cultura é de origem judaico-cristã, com os quais nos conformamos, e a partir dos quais reprimimos os impulsos e desejos que contrariam esse código moral.

Por isso exigimos de nós mesmos uma conduta perfeccionista, onde nos portamos sempre de forma amável e tolerante, e que corresponde ao nosso lado luminoso, bom, positivo. E reprimimos nossos impulsos de agressividade, sexualidade, desejos de vingança, etc., que correspondem ao nosso lado sombrio, obscuro, negativo. Afinal, essa conduta não condiz com nossa idealização, nem com os cânones vigentes em nossa cultura. E, freqüentemente,
após darmos vazão a esses impulsos nos sentimos culpados e deprimidos.

Em quase todas as culturas a questão do bem e do mal é simbolizada através do binômio luz e sombra que, produzindo um belo efeito pictórico, plastifica o espetáculo da vida. A palavra luz, que deriva do latim luce, pode significar claridade, luminosidade, brilho. Já a palavra sombra, do latim umbra, significa espaço sem luz ou obscurecido pela interposição de um corpo opaco.

No dicionário de Símbolos, "a luz se relaciona com a obscuridade para simbolizar os valores complementares ou alternantes de uma evolução. Luzes e trevas (do latim tenebra: escuridão absoluta) constituem, de modo geral,uma dualidade universal. A sombra é ao mesmo tempo o que se opõe à luz e a própria imagem das coisas fugidias, irreais e mutantes”.

Segundo a teoria junguiana, no desenvolvimento de nossa personalidade consciente, procuramos incorporar uma imagem do modo como gostaríamos de ser. Isto é, temos um ideal do ego, o qual é formado por padrões que formam a nossa personalidade consciente, e que são frutos de nossa cultura: aqui entram as influências familiares, da sociedade em que vivemos, da religião
que praticamos, e dos grupos com os quais convivemos.

Por outro lado, as qualidades pertencentes à nossa personalidade consciente e que não se ajustam a esse ideal do ego, tenderiam a ser rejeitadas e se constituiriam em parte daquilo que Jung denomina de sombra.

No conto que estamos analisando, a Bela e a Fera, segundo versão modernizada dos Estúdios de Walt Disney, vemos um jovem príncipe, mimado e egoísta, ser transformado por uma feiticeira má (e toda feiticeira é sempre “má”!), numa fera de aparência monstruosa. Para voltar à forma normal, humana, ele teria que amar e ser amado por uma bela jovem, o que o leva ao desespero.

Há no conto outros personagens: Bela, uma jovem aldeã bonita e sonhadora; Gaston, rapaz de boa aparência, porém presunçoso e arrogante, que deseja ter Bela como esposa; o pai da jovem Bela, os aldeões…

Durante uma viagem noturna o pai de Bela se perde na floresta, e para escapar dos lobos refugia-se no palácio da Fera, sendo por este aprisionado. Para salvar o pai, Bela se oferece para ficar prisioneira em seu lugar. No entanto, assustada com a aparência terrível da Fera, a jovem recusa-se a partilhar das refeições com ele, preferindo faze-las sozinha, sendo servida pelos
utensílios mágicos do castelo: o relógio, um bule de chá, o castiçal, etc.

O tempo passa e um dia Bela resolve conhecer todo o interior do castelo e penetra na área habitada pela Fera, que enfurecida expulsa-a. Fugindo para a floresta ela é atacada por lobos, sendo salva pela Fera, que na luta se fere. A jovem leva-o para o palácio e cuida dele. Inicia-se então um jogo de sedução entre Bela e a Fera, terminando com ambos apaixonando-se um pelo
outro. Bela está feliz no palácio, mas deseja ver o pai mais uma vez. Através do espelho mágico o vê caído na floresta e vai buscá-lo, levando-o para o palácio da Fera.

Enquanto isso, Gaston arquiteta um plano perverso para convencer Bela a casar-se com ele. Ao ser recusado pela jovem e descobrindo o seu amor pela Fera, incita a população da aldeia a invadir e saquear o palácio. Trava-se uma luta titânica, onde os bons e belos (aldeões/Gaston) atacam os maus e feios (objetos mágicos/Fera). E, como num espelho invertido, o bem se
transforma em mal e o mal se transforma em bem. No final a Fera (bom-feio) vence Gaston (belo-mau) e ao receber a declaração de amor de Bela retorna à sua antiga forma, voltando a ser um príncipe, não mais egoísta e mimado. Ele havia sido tocado pelo amor...

Esse conto, rico em simbolismos, possibilita inúmeras análises e abordagens psicológicas. Não pretendo esgota-las aqui, nesta simples reflexão.

Mas, dentro da abordagem junguiana, pode-se salientar que a relação afetiva vivida pela jovem Bela e a terrível Fera representa a busca de integração dos conteúdos do nosso inconsciente pelo consciente. Bela, ao conhecer e amar a Fera, possibilita a sua metamorfose em príncipe novamente, demonstrando que, na realidade, a Fera – nossa sombra, não é tão monstruosa assim. E nem Gaston- o herói e símbolo de nossa idealização, é tão formoso quanto aparenta. Ponto para Eros, o deus do amor, que transforma tudo o que toca...

Continuando a reflexão, observamos que, conscientemente, Bela parecia recusar a Fera. Porém, inconscientemente desejava essa aproximação, tendo partido dela o oferecimento para ficar no palácio da Fera como sua prisioneira.

Consultando o Dicionário de Símbolos, preparei um pequeno esquema que nos ajudará a entender melhor alguns dos simbolismos implícitos no conto:

“Conhecer o castelo” Introspecção ao nosso mundo interior; busca deautoconhecimento; simboliza a conjunção dos desejos, sendo que o Castelo às escuras (onde vivia a Fera)
representa o inconsciente; a parte luminosa (onde Bela transitava) representa o consciente;

“Espelho mágico” Símbolo do conhecimento e da sabedoria é o instrumento da iluminação; simboliza também o coração do iniciado;

“Floresta” Símbolo do inconsciente, pela obscuridade e pelo enraizamento profundo;

“Relógio” Ligado ao simbolismo do tempo e ao ciclo da vida;

“Castiçal” Símbolo de luz espiritual, de semente de vida e de salvação;

“Pai” Ligado ao simbolismo da dominação, da posse, do valor, é uma forma de representação da autoridade; representa a consciência diante dos impulsos instintivos e dos desejos espontâneos do inconsciente;

“Lobo” Imagem inciática e arquetípica cujo simbolismo está ligado ao fenômeno de alternância dia-noite, mortevida; também simboliza a sexualidade instintiva.

Ligando-se toda essa simbologia, temos uma descida ao inconsciente em busca de autoconhecimento, onde os conteúdos sombrios são gradativamente assumidos e integrados à consciência. Isto é, Bela faz uma viagem ao seu interior em busca de autoconhecimento, uma viagem iniciática de crescimento e de amadurecimento, em busca de integração dos conteúdos de
sua personalidade.

Todos nós, no desenvolvimento de nossa personalidade consciente, teremos o acompanhamento da sombra. E a sombra só se torna perigosa quando a personalidade consciente perde contato com ela, pois então ela poderá irromper com toda a potencialidade do inconsciente, como força poderosa e irracional. O famoso conto do escritor Robert Louis Stevenson intitulado O Médico e o Monstro (Dr. Jekill and Mr. Hide) é uma bela metáfora dessa cisão entre consciente e inconsciente, entre o nosso lado luminoso e o nosso lado obscuro, sombrio... Mas isso já é assunto para uma outra reflexão!

Como Bela temos que aprender a amar a Fera – o nosso lado obscuro, a nossa sombra, pois ela faz parte de nós. E, integrando essa parte obscura de nosso todo psíquico, proporcionamos um desenvolvimento mais rico e criativo à nossa personalidade.

1 Teóloga, psicóloga, mestre em psicologia clínica pela PUC-Campinas e doutoranda no Depto. de
Tocoginecologia da FCM/UNICAMP; docente da UNIFAE de São João da Boa Vista.


Texto retirado do site:
http://www.fae.br/cur_psicologia/literaturas/A%20Bela%20e%20a%20Fera.pdf

BIBLIOGRAFIA
CAMPBELL, J. e MOYERS, B. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.
CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José
Olympio: 1990.
JUNG, C., Obras completas. Petrópolis, Vozes, 1983.

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